Paulo Pires do Vale

Literatura e Identidade Narrativa.

No Canto VIII da Odisseia, no palácio dos Feaces, Ulisses, que ninguém reconheceu, ouve a sua história ser cantada por um aedo. Ao ouvir contar de si como um outro, chora porque toma consciência, nessa distância-espelho, da sua própria vida. Depois, diz ao rei:

“Que coisa te contarei primeiro? Que coisa no fim? 

Pois muitas foram as desgraças que me deram os Olímpios.

Agora direi em primeiro lugar o meu nome, para que fiqueis 

a sabê-lo, e para que de futuro, tendo fugido ao dia impiedoso,

eu possa ser vosso anfitrião, embora seja longe a minha casa.

Sou Ulisses, filho de Laertes (...)”

Como aprendemos a contar a nossa vida? Onde encontramos a estrutura da nossa identidade narrativa? A narrativa individual, que, segundo Paul Ricoeur, atribui um sentido ao vivido na dispersão temporal, constrói-se na confluência de múltiplas narrativas. Somos co-autores mais do que autores da nossa vida. A nossa identidade é fruto de uma obra plural e não apenas do próprio. E, aqui, o papel dos mitos e da literatura é essencial. Ela pode transfigurar e recriar o horizonte da existência, não só daquele que se predispõe a acolhê-la, mas de toda uma sociedade. Não altera apenas a forma como contamos, mas já o modo como vivemos. Somos resultado dela. E o leitor de um livro, o espectador ou participante de uma obra de arte, torna-se, então, leitor e intérprete de si próprio. Pode descobrir aí possibilidades de si antes desconhecidas: abre-se a um si mais vasto. Somos Seres-emaranhados-nas-histórias: para Wilhem Schapp, esse emaranhamento não é uma complicação secundária, mas a condição primeira, essencial, da identidade.

 

Nota Biográfica

Paulo Pires do Vale é professor, ensaísta e curador; presidente da AICA -Associação Internacional de Críticos de Arte - Portugal. É licenciado e Mestre em Filosofia pela FCSH - Universidade Nova de Lisboa. Dá aulas na Universidade Católica Portuguesa, na Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich e no Departamento de Arquitectura da Universidade Autónoma de Lisboa. É autor de Tudo é outra coisa. O desejo na Fenomenologia do Espírito de Hegel, (Colibri, 2006); de ensaios para revistas, livros e catálogos de exposições colectivas e individuais, em Portugal e no estrangeiro. Entre as exposições que comissariou, destacamos: Ana Vieira - Muros de Abrigo, CAM-F.C.Gulbenkian, 2011; Rui Chafes - Inferno, Galeria Esteves de Oliveira, 2011; Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro de ilimitam, Museu Calouste Gulbenkian, 2012; Tratado dos Olhos, Atelier-Museu Júlio Pomar, 2014; Visitação. O Arquivo: Memória e Promessa, Museu de São Roque, 2014; Pliure (Prologue), Fondation C. Gulbenkian, Paris, 2015; Pliure (Épilogue), Palais des Beaux-Arts, Paris, 2015; Lourdes Castro - Todos os Livros, Museu Calouste Gulbenkian, 2015; Não te faltará a distância, Igreja de São Cristovão-CML, 2016; Festival de l´incertitude, Fondation Gulbenkian, Paris; Paris; Ana Hatherly e o Barroco. Num Jardim Feito de Tinta. Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2017.

 

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